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  • Foto do escritorRubia Konstantyni

Aprendiz de Sonho

Atualizado: 21 de mar. de 2023

Há alguns anos, em um tempo não tão distante, viviam quatro irmãs a inventar brincadeiras – e quando digo inventar é inventar mesmo. Essas meninas não tinham brinquedos prontos, como sabemos hoje. Elas criavam bonecas de sabugo de milho, carrinhos de gravetos, casas de pedrinhas e folhas das árvores, panelinhas de casca de laranja ou abacate, banquetes com sabores de pétalas de flores coloridas e bolinhos de barro. E sonhavam com dias em que essas invencionices virariam realidade.


– Aqui você pode comer a vontade, minha irmã. Esse ovo-margarida é todinho seu, não precisa partir ao meio e dar metade para ninguém.


– Eba, toda a parte amarela só para mim.


Passavam algumas horas, em devaneios felizes, no quintal de terra batida. Por vezes olhavam em direção à casa, era preciso ouvir o chamado da mãe, tinham “brincadeiras ajudativas” combinadas para todos os dias: hora de lavar louça, preparar almoço e janta, varrer o chão, ajudar com as roupas e com a arrumação de todos os cantinhos. Mas tinha uma atividade que era a preferida das quatro, ser aprendiz de sonho, ah, era uma alegria ímpar esperar por esta ocasião.


Dá para imaginar o que é ser Aprendiz de Sonho? ajudante de poções mágicas, fazedora de doces com chocolates, costureira de tapetes voadores, fabricante de roupas brilhantes. Eis alguns exemplos que nascem na minha cabeça pensante. Mas, para essas meninas, ser aprendiz de sonho era construir colchões e travesseiros. Sim, elas montavam, de tempos em tempos, os lugares onde dormiam e por isso inventaram este nome para a “brincadeira” mais inesquecível de todas. Parecia que, ao adentrar neste momento, o mundo era perfeito.


– Vita, já estamos dormindo no duro há alguns dias, logo mais a mamãe vai falar para afofar nosso sono.


– Então é melhor a gente juntar mais palha de milho e mais algodãozinho e mais folhas fofinhas, Zulmira.


– Eu também vou, eba! – Neide sussurrou.


– Todas vamos, já não está “careca” de saber? – a última das irmãs, resmungou.


As crianças conversavam baixinho, antes de fechar os olhos, naquelas noites em que percebiam o evento próximo.


Bom, para ter colchões e travesseiros frescos e se divertir um bocado era, mais ou menos, assim: carregava-se na cabeça o colchão e o travesseiro até a beira do rio, a mamãe abria um por um, jogava-se fora o que estava dentro, esfregava bem o tecido com água e sabão de pedra feito em casa (até ficar branquinho), enxaguava e colocava para secar. Depois de tudo seco e cheiroso, voltava-se para casa e era hora de encher novamente os dormidores, risada larga para todos os lados, as meninas tinham que entrar dentro dos tecidos para levar as palhas e folhas, com o objetivo de ficar bem cheinho e gostoso de deitar depois. Ah, como eram miúdas se perdiam envoltas em tamanha quantidade de quinquilharias em seus corpos. Desejavam que essa hora não terminasse nunca, de tão bom que era ficar dentro do colchão. E quando, enfim, precisavam sair, esperavam a costura ser finalizada para devolver o dormidor no lugar, junto com o travesseiro.


Pensam que a brincadeira acabava assim? Não, nas horas daquela noite a festa continuava, pois o conforto e o aconchego durava um percurso de estrelas. O colchão logo murchava e o travesseiro também, encostando os corpos ao chão. Restava aguardar o novo dia de Aprendiz de Sonho chegar, ansiosas.


Dizem que foram muitas as vezes em que essas quatro irmãs se aventuraram entre rios e dormidores, cresceram e hoje são adultas-velhinhas. Nunca esqueceram os sonhos experimentados neste tempo de aprendiz e gostam de contar para as suas filhas o que viveram.

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